Em muitos países, em especial nos Estados Unidos e no Brasil, o uso da máscara contra a Covid-19 e o isolamento social também se tornaram alvo de disputa ideológica. Quem é contra alega que as medidas restringem as liberdades individuais. Do outro lado, em alguns casos mais extremos, as medidas são seguidas com tanto rigor que também resultam em desentendimentos até com aqueles que aplicam uma quarentena mais flexível. Rapidamente, a crise sanitária foi atropelada por visões ideológicas da pandemia e virou alvo de mais um embate entre dois polos, para quem seguir a quarentena à risca significa ser de esquerda e evitá-la é o comportamento esperado dos eleitores da direita. "O problema é que entramos numa página da história em que tudo se tornou político. Não há mais meia medida: se você é favor de alguma coisa, você é automática e radicalmente contra a outra. Não há a justa medida necessária em vários momentos da política”, analisa o cientista político Carlos Alberto de Melo, professor do Insper, em São Paulo. “A pandemia já extrapola a questão da doença: ela se transformou em um instrumento político a favor ou contra o governo.” Confrontos pelo uso da máscara Conflitos e até mortes por causa do uso da máscara contra a Covid-19 já foram registrados em diversos países. Na França, no início do mês, um motorista de ônibus foi morto depois de ser espancado por jovens que se recusavam a utilizar a proteção. O embate ideológico sobre a questão, avalia Melo, chegou a tal ponto que não pode mais ser visto com naturalidade pelos observadores das rivalidades comuns na política. “É uma questão de saúde pública: estamos falando de vidas humanas e não de uma disputa eleitoral – que, aliás, seria passageira num regime democrático. A vida é uma questão muito mais perene”, ressalta. O professor do Insper lembra que, em casos como o brasileiro ou o americano, a postura dos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump acentuam essa polarização em torno da pandemia. Ao evitarem usar máscaras em público, sinalizam para a população que o seu porte é facultativo, independentemente do que diga a lei. "Presidentes da República são as principais lideranças de um país, e você lidera pelo exemplo. Os seus gestos, os seus sinais, aparecem como símbolos”, frisa o cientista político. "Se um presidente não cumpre a lei, quando ela diz que é preciso andar de máscara no espaço público, por que o cidadão comum acreditará nela?”, comentou Melo, que ainda relembrou do recente caso de um desembargador de Santos (SP) que enfrentou um guarda municipal por se recusar a colocar a proteção, apesar de um decreto em vigor na cidade. "Exemplos como esse só aguçam a disputa”, diz o professor. Na Europa, medidas contra a Covid-19 foram mais consensuais Melo destaca ainda que, embora existam radicalismos dos dois campos – os opositores à quarentena e os adeptos das medidas rígidas –, “um lado da história entrou muito errado na condução desse processo, negando a ciência, a necessidade do confinamento e a gravidade da própria doença”. “Vale citar uma antiga frase de Maquiavel: as pessoas esquecem muito rápido o bem que lhe fizeram, mas não esquecem o mal”, observa Melo. Na Europa, a polarização também existe, porém houve um consenso político maior sobre as medidas que precisavam ser tomadas para controlar a expansão do vírus, independentemente do partido no poder. “Tem o papel do Estado na Europa, que é maior, e o tipo de educação mais humanística e voltada para o coletivo, menos individualista. A Europa sempre primou o interesse coletivo sobre o interesse individual, ao contrário dos Estados Unidos, onde as liberdades individuais se sobrepõem”, contextualiza o cientista político, que cita ainda a onda negacionista que se abateu sobre as ciências no mundo inteiro, em especial no Brasil, para explicar a resistência às medidas de quarentena e proteção.
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